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Crônicas

O preço das vidas


O trabalho rotineiro nos impede de observar com atenção o mundo ao nosso redor. Todos os dias chego no Wandão, cumprimento os colegas na sala de professores e subo até a sala mais distante da escola: A última do terceiro piso a esquerda, longe do resto do mundo, sem energia elétrica, mas muito próxima da minha alegria de receber os meus queridos jovens, razão do meu trabalho e da minha luta por uma educação pública de qualidade e humanizada...

Quando falo em humanização da educação, me refiro à maneira de se relacionar com os seres a nossa volta, sejam eles humanos, ou não...

Uma sexta-feira meio cinza, véspera de feriadão, seguia minha rotina normal, cumprimento na sala de professores, respondido por alguns e por outros ignorado, um gole de água no copinho descartável cor de marfim, mochila nas costas rumo às escadas para mais um dia de trabalho no melhor lugar do mundo para se conhecer pessoas fantásticas: A sala de aula...

No início do segundo lance de escadas, encontro o “Papai Smurf”, cabeça baixa, orelhas murchas, cauda entre as patinhas traseiras. Me abaixo para dar-lhe uma atenção e ele se derrete todo, a orelha se levanta, a cauda também, em movimentos frenéticos, típicos da alegria de um cão quando identifica o interlocutor como amigo... Trocamos alguns carinhos, enquanto isso, ouço uma voz que, pelo discurso, nem fiz questão de saber de onde vinha:

- Quer comprar, professor? Qualquer cinquentão, pode levar...
Claro que o cachorrinho barbudo e nanico não era do dono daquela voz. Deveria ser de outro aluno, pois há dias ele é visto na escola e numa ocasião, pôs-se a chorar, desesperadamente quando encontrou a porta fechada... Chorava um choro doído, comovia os corações humanos e incomodava, pelo barulho, os corações de pedra que preferem o silêncio da desumanidade de uma aula autoritária...

Quem me pediu cinquentão pelo animal? Certamente um desses corações de pedra, tentando fazer uma infeliz brincadeira com a situação... Alguém que, em nenhuma hipótese se agacharia para agradar aquela pequena vida peluda e barbuda, batizada, carinhosamente pela Rosilene de Papai Smurf..

Mas esse conceito de pôr preço nas vidas não foi criado por essa voz misteriosa... Há muito tempo a humanidade vem se achando superiora a ponto de designar valores monetários a tudo, inclusive outras vidas... Um cachorro é uma vida quase humana, a meu ver não tem preço, seja qual for a raça. Aliás, o comércio de animais agrada a todos os envolvidos, menos o animal, pois as fêmeas de raças que têm maior valor comercial são maltratadas na sua integridade física, sendo obrigadas a cruzarem constantemente para dar lucro ao seres desumanos que alimentam esse negócio cruel...

Assim como todos os seres humanos são iguais perante a lei (pelo menos é o que o papel diz), os animais deveriam ser... Penso que toda vida, independente de espécie, ou raça tenha a mesma importância, principalmente se tratando do melhor amigo do homem, afinal, ainda não encontrei bicho mais fiel do que o cachorro. Desta forma, colocar valores diferenciados para esta, ou aquela raça, na minha visão humana, ridícula e limitada deveria ser crime hediondo, pois trata-se de um atendado à vida...

Mas infelizmente, tenho certeza que as pessoas que enriquecem vendendo vidas, jamais se sujeitariam a dar atenção ao Papai Smurf, pois se trata de um mestiço, adotado por um coração humano o suficiente para fazê-lo sentir saudades quando os dois precisam se afastar por causa dos estudos...

Precisamos aprender mais sobre as coisas humanas com os animais...

Márcio Roberto Goes
www.marciogoes.com.br


Márcio Roberto Goes

Professor de Língua Portuguesa, língua Espanhola e suas respectivas literaturas, efetivo na rede estadual de ensino de Santa Catarina, graduado em Letras pela Unc, antigo campus de Caçador e especialista em análise e produção textual pela FAVEST. Escritor, palestrante, diretor artístico e locutor da Web rádio Ativa Caçador. Membro da Academia Caçadorense de Letras e Artes.

marciogrm@yahoo.com.br