Pé no barro
Moro na maior avenida de Caçador... Maior e mais esquecida nos seus quatro quilômetros e meio de extensão, começando no presídio, desembocando na rua Brasília e, no entanto, só foi agraciada com uma amostra grátis de asfalto num minúsculo trecho e um pedacinho de calçamento...
Há alguns dias, uma criança morreu brutalmente atropelada enquanto brincava na beira da estrada por alguém que pensou que seu carro voasse... Por conta disso, a população dos arredores se reuniu e, por iniciativa própria, construiu duas lombadas numa tentativa de diminuir a velocidade dos possantes que ali transitam... Uma dessas lombadas está em frente a minha residência oficial...
Constantemente, ouço ruídos de rebaixados que enroscam na tal lombada... Alguns, mais precavidos, fazem o carro rebolar, ocupando as duas pistas para poder atravessar o obstáculo sem danificar o veículo que teve suas características originais alteradas por conta de uma vaidade, atrapalhando o trânsito de forma egoísta... Às vezes, o barulho é de frenagens bruscas, pois já que a iniciativa partiu da comunidade, o trecho ainda não mereceu sinalização... É bem verdade que não mereceu quase nenhuma melhoria desde que a estrada foi aberta. Só de vez em quando aparece uma patrola raspando o problema e empurrando a solução com a barriga para um outro dia, um outro ano, uma outra eleição...
Mas um fato me deixou intrigado esta semana... Havia chovido um dia antes e, no momento, garoava, a pista estava feito sabão, pois como sempre, houve uma manutenção recentemente feita pela metade, a tubulação foi reparada, mas se esqueceram da pedra brita... Uma criança se aproxima da lombada feita de terra com um chinelo três vezes maior que o pé. Ela dá um passo, o pé vai e o calçado fica grudado, outro passo, a mesma coisa... E a criança, aparentando seus cinco, ou seis anos toma uma atitude radical: retira os chinelos e coloca o pé diretamente no barro...
Por um instante, imaginei que aquilo fosse novidade para o menino, já que me pareceu surpreso com a sensação, vi em seu rosto um leve sorriso daqueles que só crianças traquinas sabem produzir. Desceu da lombada e atolou o pé totalmente no barro: Já que é pra sujar os pés, que seja bem sujo – deve ter pensado naquele momento... Seguiu seu caminho e eu, quando me dei conta, estava paralisado observando uma criança com os pés no barro seguindo seu caminho na longa avenida sem asfalto até que desaparecesse no horizonte...
Minha mente viajante já traçou inúmeras possibilidades. Talvez aquela criança sozinha no meio da rua, ainda não tivesse, na sua tenra idade, a oportunidade de sentir o calor da terra em seus pezinhos, muito menos do barro. Quem sabe, sua mãe lhe daria umas boas cintadas por chegar em casa com os pés sujos e a fizesse lavá-los com escova no tanque. Ou ainda, ficasse de castigo pela traquinagem... Seja qual for a sequência, o que importa é que se tratam de fatos raros nesta segunda década do século vinte e um...
Com o mundo informatizado, facebook, watsapp e tantos outros aplicativos que aproximam os perfis e separam os seres humanos, não há tempo de despertar o interesse de uma criança em se lambuzar de barro num dia de garoa. Sob pretexto de que o menino pode se contaminar com isso, ou aquilo, dificilmente os pais permitem que seus herdeiros sintam a natureza em seus pés...
Mas existe o outro lado da moeda: Este mundo tecnológico e moderno, ainda não está acessível de forma plena ao povão que nem asfalto merece na frente de sua casa. Tudo o que existe de recursos mais modernos, primeiro deve ser oferecido a quem já tem, para depois repartir as migalhas com aqueles que estão às margens da sociedade, pisando no barro e esperando a boa vontade dos engravatados eleitos por esse mesmo povo que ora sofre com o descaso em sua rua...
Queria poder acreditar que, em breve, aquela criança pudesse tirar os chinelos para sentir o barro em seus pés num outro lugar, menos no meio da rua que utopicamente poderia estar pavimentada e sinalizada corretamente...
Márcio Roberto Goes
www.marciogoes.com.br