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Crônicas

O homem que tudo queria...


Era uma vez um menino que nada tinha além daquilo que necessitava para sobreviver... Mas ele queria mais, ele queria ser, ele queria ter... Ser homem, ter trabalho, ser alguém reconhecido, ter dinheiro...

O menino cresceu, agora era um homem... Um homem que nada tinha, que lutava, tentava, arriscava, trabalhava... O homem que nada tinha queria ter, então começou a comprar... Comprava tudo... de todos... Se identificasse um por cento de necessidade, comprava, comprava e comprava... E o capitalismo o amava, pois o homem gastava e as pessoas que tudo vendiam, lucravam, lucravam e lucravam com o homem que tudo comprava... Comprava isso e aquilo, queria ser mais, queria ter mais: carro, casa, móveis confortáveis, utilidades inúteis...

E o homem que tudo comprava acumulou bens e dívidas... Percebeu que não precisava de tantas coisas, então resolveu repartir com quem nada tinha... Repartiu tudo o que era e tudo o que possuía: Seus bens, seu automóvel, sua casa, seus alimentos, suas roupas... Só não repartiu as dívidas. E elas aumentavam assustadoramente... Mas o homem que tudo partilhava ainda tinha o nome limpo e começou a fazer empréstimos daqueles que tudo tinham, mas não repartiam sem que fosse devolvido com juros... E os banqueiros ficaram felizes, consignaram a dignidade do homem que tudo partilhava...

Então, o homem tinha dinheiro novamente e voltou a comprar, repartir, comprar de novo e partilhar novamente... Um ciclo sem fim de generosidade e dívidas.... Ele queria ser, ele queria ter, ele queria repartir..

 Um dia, o homem que tudo partilhava ficou sem crédito, nome sujo, vida sofrida, dívidas e mais dívidas... Mesmo assim, não deixou de partilhar, fazia tudo o que podia para todos que não podiam, ou não queriam admitir que eram capazes... Continuou repartindo seus bens, seu conhecimento, sua vida... As dívidas, outra vez, não foram repartidas, pois ninguém quer dívida dos outros, mesmo que o outro seja quem o ajudou um dia... A vida dá voltas e, numa dessas voltas, o homem que tudo repartia ficou por baixo... Aqueles que tudo recebiam dele, ficaram por cima, pararam de ser favorecidos pelo homem que, agora, nada tinha...

O homem que tudo partilhava perdeu tudo, os bens, a dignidade e até a confiança. Só não perdeu o conhecimento adquirido no decorrer da vida... Neste momento, aqueles que tudo tinham, pois foram ajudados pelo homem que tudo partilhava, o condenaram... O acusaram de ser o culpado da própria desgraça, o questionaram, queriam saber o que ele fez com tudo o que tinha... O homem não sabia responder, pois os generosos, dificilmente lembram de seus feitos, isso é característica dos avarentos que sempre acham um modo de cobrar o pouco que fazem pelos outros...

Então ele voltou a ser um menino... Um menino sonhador, queria ter novamente, queria ser novamente... Seu coração queria voltar a ter para voltar a repartir, mas sua mente o ordenava a segurar tudo o que conquistasse para si... Mas o menino que um dia foi homem, não se deixou contaminar pela cobiça. Só queria poder fazer algo pelos mais próximos, queria poder voltar aos “bons tempos” em que vivia rodeado de amigos que usufruíam, despreocupadamente daquilo que tinha e daquilo que era... Mas ele já não tinha nada... Ele já não era mais nada... Era um menino que só caiu porque um dia subiu... Subiu de mãos dadas com os demais e, quando caiu, poucas mãos o tentaram segurar. Não tiveram forças. Sem querer, o deixaram despencar e se juntaram aos que o criticavam de forma cruel...

É fácil pisar em quem já está no chão... É fácil empurrar quem já está caído... É fácil condenar quem já sofre a condenação do sistema... O capitalismo que tanto o seduziu, agora o deixou na mão, cheio de boletos para pagar o conforto dos outros sem se importar com o fato de que ele não tem o básico para sobreviver... Aqueles que tudo vendiam já não o tratavam mais como cliente preferencial. Agora era um inadimplente, sua caixa de coreio e seu telefone sabiam muito bem disso, provaram o gosto amargo da falta de planejamento, da ação mais pelo coração que pela razão...

A sofreguidão o ensinou a ser de novo um menino... Voltou a sorrir... Custou, mas ergueu, com muito custo, a cabeça e a dignidade, decidiu lutar novamente para ter e ser, agora com uma grande diferença: Ele ainda tinha todo o conhecimento que ninguém conseguiu consignar nem roubar... 

Era uma vez um menino que nada tinha, além daquilo que necessitava para sobreviver...

Márcio Roberto Goes
www.marciogoes.com.br


Márcio Roberto Goes

Professor de Língua Portuguesa, língua Espanhola e suas respectivas literaturas, efetivo na rede estadual de ensino de Santa Catarina, graduado em Letras pela Unc, antigo campus de Caçador e especialista em análise e produção textual pela FAVEST. Escritor, palestrante, diretor artístico e locutor da Web rádio Ativa Caçador. Membro da Academia Caçadorense de Letras e Artes.

marciogrm@yahoo.com.br