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Crônicas

A vida pelas lentes


Certa vez, quando ainda trabalhava numa emissora de rádio, comecei a sentir minha visão embaralhada ao fitar,  no estúdio, as paredes brancas cheias de furinhos... O problema não eram as paredes, eram meus olhos. Ao consultar o oftalmologista, o diagnóstico foi certeiro: Miopia. Anos depois, descobri que se tratava mesmo de astigmatismo e ceratocone (Afinamento da córnea), fatos que me fazem ter uma visão desfocada. Uso óculos há quase vinte anos, mas sou totalmente dependente deles há uma década, quando as deficiências se agravaram...

Quando coloquei óculos pela primeira vez, parecia que eu já tinha nascido com eles, tamanha foi a rapidez da minha adaptação e, desde então, os tenho como um charme. Procuro entendê-los como acréscimo e não como um fardo que devo carregar por toda a vida. Já fiz a experiência das lentes de contato, mas não me adaptei com um corpo estranho dentro destes olhos castanhos ceratocônicos e astigmáticos... Não posso fugir do fato que hoje, os óculos são minha marca registrada e preciso deles, inevitavelmente para ver o mundo a minha volta quase como as pessoas de visão normal o enxergam.

Por conta dessa dependência, guardo sempre o grau anterior como reserva e tenho óculos escuros com meu grau, para um melhor conforto visual à luz do dia sem prejudicar a qualidade...

E eis que, dia desses, na escola, ao mexer com a armação, meus óculos têm uma perna mutilada. Fiz o que pude para reimplantá-la sem sucesso, já que para arrumá-la, eu precisava estar com os óculos na mão, o que significa que não estaria cumprindo seu papel em frente a meus olhos, me ajudando a decifrar o mundo ao meu redor. Meus colegas de visão perfeita me ajudaram a remendar a perna do pobrezinho e então, ele voltou manco para seu lugar, remendado com fita adesiva... Com uma perna frouxa, já não era mais o mesmo, pois não se encaixava com perfeição e me fazia perder o foco... A solução foi apelar para os óculos de sol que eu havia usado no trajeto até a escola...

Porém a parada pedagógica se estendeu até anoitecer e lá estava eu, de óculos escuros, na sala de planejamento, à noite... Estranho, mas era a melhor qualidade de visão que eu poderia ter no momento...

Pobrezinhos de meus óculos, companheiros inseparáveis, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, sempre prontos a me mostrar o mundo como ele é (pelo menos o que é visível), Agora ali, jogados num estojo, sem uma perna, depressivos, sem cumprir com seu papel... Mas nada dura para sempre, logo serão encaminhados à óptica para diagnóstico e, possível reparo, enquanto isso, os óculos reserva interrompem seu merecido descanso para voltar a ativa, apesar de defasados, ainda me fazem enxergar melhor do que com sua ausência...

Assim somos nós: essenciais para as pessoas ao nosso redor, porém, jamais insubstituíveis e, por vezes nos encontramos contundidos física, ou moralmente, nos obrigando a buscar o reparo necessário para que possamos voltar a cumprir nosso papel, substituído então, por uma defasagem, ou pela penumbra dos óculos escuros que nos obrigam a usar em algumas situações para que os outros não percebam a direção do nosso olhar...

As pessoas e as lentes dos óculos devem ser atualizadas constantemente para não perderem o foco, do contrário, a visão de mundo estará constantemente defasada...

Márcio Roberto Goes


Márcio Roberto Goes

Professor de Língua Portuguesa, língua Espanhola e suas respectivas literaturas, efetivo na rede estadual de ensino de Santa Catarina, graduado em Letras pela Unc, antigo campus de Caçador e especialista em análise e produção textual pela FAVEST. Escritor, palestrante, diretor artístico e locutor da Web rádio Ativa Caçador. Membro da Academia Caçadorense de Letras e Artes.

marciogrm@yahoo.com.br