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Crônicas

O muro da minha infância


Vivi três décadas e meia no bairro Sorgatto. Lá está enterrado meu umbigo… De lá, guardo lindas e ternas lembranças: A velha casa de madeira, o pomar nos fundos do terreno que o atual morador ainda conserva, o carreiro de hortênsias até a porta da cozinha. O limoeiro que ainda sobrevive, enfim, o cheiro, o sabor, as cores da minha infância estão lá e isso jamais será mudado em meu coração, ou apagado de minha mente…

Vi a rua Estados Unidos se transformar durante os trinta e cinco anos que vivi naquele endereço: Foi aterrada por duas vezes, recebeu construções que, na sua maioria ainda estão lá, foi revestida calçamento de paralelepípedo… Depois de algum tempo, nossa residência foi agraciada por uma calçada que ainda resiste ao tempo e um muro que não passa de quarenta centímetros de altura e, por algum tempo, foi sobreposto por uma cerca-viva…

Constantemente, na infância e na adolescência, durante a noite, me refugiava naquele muro para refletir, curar saudades, temores, rancores, angústias e até o estresse. Por vezes, simplesmente deitava no pequeno muro e ficava em transe só observando a imensidão do céu, identificando as constelações e viajando nas minhas utopias, até que me despertava novamente com uma lambida carinhosa do Bilu, que parecia me chamar de volta para a vida com o amor incondicional que só um cachorro de estimação é capaz de sentir... Mesmo depois que as cercas-vivas cresceram, ainda assim, sentava na calçada e ficava pensando, admirando a imensidão do céu.

Às vezes, era interrompido pelo ruído dos automóveis, raros à noite naquela rua, pelos passos compassados de algum bebum que voltava da bebedeira, ou mesmo alguém que voltava do trabalho…
 Hoje percebo o quanto meus pensamentos ingênuos, despreocupados e utópicos naquele muro, ajudaram no meu crescimento pessoal. Um muro que não cumpria sua função de separar nossa família do resto do mundo, por conta de sua baixa estatura, me fazia viajar na imaginação e curar qualquer enfermidade da alma… Às vezes, minha mãe ia, pé ante pé, até a varanda se certificar que eu ainda estava lá. Deixava que ela acreditasse  que eu não percebia o seu cuidado... Eu sabia que poderia viajar pelo universo, mas jamais fugiria dos cuidados carinhosos de minha progenitora…

Por vezes, sinto falta daquele muro. O mundo se torna mais cruel à medida que amadurecemos e abandonamos os hábitos da infância e adolescência. Às vezes, se faz necessário voltar no tempo e se fazer ingênuo novamente, contemplar o universo, viajar nas esperanças, temores e utopias…

Meu endereço já não é mais o mesmo, o mundo não é o mesmo, eu  não sou o mesmo… Mas o pequeno muro de minha infância permanece vivo em meu coração, me fazendo olhar para o infinito e contemplar o universo, agora com uma estrela especial: minha mãezinha que, certamente, de vez em quando sai, pé ante pé na varanda do céu para me cuidar e se certificar que estou bem, deitado no muro e sonhando, como sempre fiz…

Márcio Roberto Goes
www.marciogoes.com.br


Márcio Roberto Goes

Professor de Língua Portuguesa, língua Espanhola e suas respectivas literaturas, efetivo na rede estadual de ensino de Santa Catarina, graduado em Letras pela Unc, antigo campus de Caçador e especialista em análise e produção textual pela FAVEST. Escritor, palestrante, diretor artístico e locutor da Web rádio Ativa Caçador. Membro da Academia Caçadorense de Letras e Artes.

marciogrm@yahoo.com.br